Um lance de bola não abole o acaso

 

 Jeferson M. Pinto

 

Os chavões dos cronistas esportivos colam nas nossas cabeças de torcedores e os repetimos sem cessar, por brincadeira ou mesmo pela mestria que exercem na formulação de opiniões, por nos fazerem sentir entendedores de assunto tão complexo. São achados de natureza quase filosófica: “futebol é uma caixinha de surpresas, é um esporte apaixonante por ser um retrato da vida, imprevisível”, “ nem sempre o melhor ganha”, ”quem não faz gol acaba levando”. Passando das formulações filosóficas às técnicas: “jogar no erro do adversário”, “para ganhar o time tem que ter a posse de bola”, “a marcação tem que variar entre a alta que se dá no campo do adversário e a baixa”. Formulações de estratégias de guerra de dar inveja a Sun Tzu!

Já foi dito até que todo brasileiro é técnico e que sabe propor soluções tão boas quanto os profissionais. Por vezes, os comentários sobre futebol descambam para análises selvagens de treinadores, como “técnico bom é perverso, ele faz antecipadamente o que o adversário faria”, ou “para ser técnico tem de ser paranoico, ficar desconfiando do outro todo o tempo”. Todas essas análises e comentários são tentativas de explicar as derrotas, propor saídas que possibilitem controlar o fator circunstancial em uma partida e impedir a derrota ou vencer a guerra contra o imponderável. 

 

Esse espírito boleiro invade até a Academia. Há alguns anos, em uma banca de Mestrado na Filosofia da UFMG, um candidato dissertou sobre o desejo na perspectiva de Hegel e de Lacan. Nosso colega Célio Garcia e eu compúnhamos a banca examinadora. A discussão enveredou pelo aspecto da inevitabilidade da contingência e o “saber em fracasso” como possibilidade de novos arranjos subjetivos. Subitamente, o orientador e presidente da sessão, professor José Henrique Santos, extremamente erudito, pergunta com um ar um tanto perplexo se nós, psicanalistas, de fato dávamos tanto peso à contingência. Como o candidato e nós, os examinadores, confirmamos a assertiva, ele introduziu uma questão importante: “Vocês querem dizer então que posso acreditar que por meio de uma contingência o Atlético poderá ganhar do Cruzeiro?” O time do Cruzeiro tinha na época uma organização tática e técnica acima dos padrões dos times brasileiros.

Sabemos que uma contingência muda o rumo de uma história, seja a de uma partida de futebol ou de nossas vidas. Experimentei um encontro em um jogo de futebol que possibilitou um golpe narcísico fundamental na orientação de minha adolescência. Como um praticante de futebol de salão, considerava-me um craque (narcisicamente, é claro) muito acima de ter apenas uma razoável habilidade com a bola e uma visão de jogo. Já tinha sido convidado pelo Atlético e pelo Cruzeiro, grandes times de Minas Gerais, para jogar pelo time juvenil de futebol de salão. Contudo, tinha dúvidas se queria me dedicar ao futebol como profissão, embora fosse a atividade na qual me sentia mais à vontade, menos inibido, dedicava-me com mais intensidade e supunha ganhar mais reconhecimento.

À época, estudava no Colégio Estadual e ficamos orgulhosos com a chegada de Tostão, um estudante de nossa idade, entre 16 e 17 anos, que já era jogador de futebol pelo América. Em algumas disciplinas, lembro especialmente de Biologia, éramos da mesma turma.

Ficamos animados porque o cara tinha fama e sabíamos que com ele o Colégio passava a ter muitas chances de ganhar o campeonato estudantil secundarista.

O golpe narcísico a que me referi se deu antes do campeonato. Os professores de Educação Física organizaram um torneio interno para montar a equipe do colégio, e minha sala começou jogando contra a sala na qual Tostão fazia mais disciplinas. Perdemos o jogo por 5 a 1, com quatro gols do Tostão no primeiro tempo, sendo um deles passando por todos os adversários, dando chapéus e passando a bola por entre nossas pernas. E tudo isso quase displicentemente, com uma extrema simplicidade, sem arrogância ou exibição, como se aquilo fosse a mais óbvia das tarefas. Ele não marcou mais gols porque resolveu jogar de goleiro no segundo tempo. Foi um golpe arrasador no meu narcisismo. Vendo-o jogar de perto, percebi o que era um jogador de futebol. Ele jogava contra colegas considerados bons jogadores e o fazia como se estivesse jogando com crianças de cinco anos.

O que se escreveu para mim desse encontro foi a destituição do meu narcisismo de “boleiro” e o esclarecimento de que a dependência do reconhecimento não é grandes coisas. Mas durou pouco... Se o narcisismo carrega também a face visível da pulsão de morte, ele se tornou mais evidente porque me revelou que eu não poderia aceitar ser apenas mais um jogador, que eu só poderia jogar futebol se fosse tão bom quanto aquele jogador que seria considerado genial, após pouco mais de cinco anos, ao ganhar a Copa do Mundo com a seleção de 1970. Além disso, acho que esse encontro me ajudou a constatar, muito tempo depois, como o narcisismo revelava uma posição subjetiva que só uma psicanálise poderia acessar, propiciando algum tratamento de sua vertente alienante e mortífera.

Desse encontro e da escrita que se fez dele restou, desde muito cedo, o estranho reconhecimento de que os encontros fortuitos podem ter o valor de uma contingência, produzir retificações e, às vezes, custar apenas um Tostão.

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