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Notas de Célio Garcia sobre verdade e política

 VERDADE

(Fragmentos do texto “A Psicanálise, A Ética e o Social”, do livro Psicanálise, Política e Lógica, publicado pela Editora Escuta, em 1994)

Uma ética está voltada para o momento em que vivemos, está envolvida com nosso trabalho de todos os dias; no nosso caso, como analistas, somos procurados por pessoas que trazem uma demanda. Trata-se de não adulterar essa demanda.

(...)

Freud chegou a elaborar um mito, “o assassinato do pai primevo” (...). O pai primevo era mesmo um tirano, a rebelião foi um momento agudo de reflexão, um ato político no qual se pensou a realidade dos acontecimentos. A horda teria realizado o máximo de que era capaz; simples mortais, agiram como seres que arrastam a dificuldade, o impossível.

(...).

Fato é que, em vez de louvar a rebelião, o mito aqui é entendido como uma linguagem capaz de conter a estrutura da verdade. Qual verdade? A Psicanálise esteve envolvida com variadas propostas éticas ao longo do século em que a incidência do gesto de Freud se fez presente. (...) sempre foi assim: da Ética se vai à Política.

(...)

O indivíduo para o Estado é o “um da conta”, o que não contempla efetivamente o que chamamos sua singularidade. A regra não garante a Verdade, o Estado Liberal não está comprometido com a verdade. Para esse Estado, as regras são o fundo e a fundação do pensamento.

Para nós interessa a verdade do sujeito, verdade como sintoma, seja lá o que for, mas verdade. A verdade está na disparidade entre a Ética e o Social, quero dizer, o político, uma já não dá conta da outra; por outro lado, a revolução como fundamento de uma ética já não se mostra efetiva.

(...)

A Psicanálise não se vale de uma interpretação do Social nem procura descobrir o que está no fundo ou nas profundezas. Se o Social designa precisamente esta distância entre as palavras, os acontecimentos e uma verdade não verbal, se o Social designa um conjunto de relações, Social designa também ausência de palavras para designá-las adequadamente.

(...)

Não faremos, portanto, Sociologia; a Sociologia nasceu interessada na denúncia da mentira das palavras, para logo depois se apresentar na sua versão positiva como utopia de um Social adequado a si mesmo. Uma solução terá sido atribuir ao sujeito uma chance de decisão frente ao inusitado da situação. A Psicanálise se destacou nesse momento, pois jamais arredou pé da questão do sujeito. Já outras abordagens não davam tanta importância ao personagem que tais questões levantavam.

(...)

A abordagem que propomos reconhece, no momento atual, crescente interesse pela posição subjetiva, porém o sujeito terá que ser redefinido em função do estatuto que lhe é reservado na pós-modernidade. A abordagem que propomos repensa a questão da fecunda articulação entre rebelião e pensamento e, consequentemente, a Ética. Entendo por pós-modernidade democrática o entrecruzamento de várias séries de identificações dos seres falantes ao se atribuir caráter aleatório e singular a toda coleção de indivíduos.

A idade da pós-modernidade dá a conhecer uma subjetivação que é obra do acaso, “engendrada por pura abertura do ilimitado, constituída a partir de lugares de palavras que não são localidades designáveis”.

(...)

Está em vias de elaboração uma teoria do sujeito na qual se reconheça a raridade do próprio sujeito, já que efeito de um acontecimento político, no qual se articulem três instâncias: “liberdades formais” (Simbólico), “liberdade selvagem dos movimentos revolucionários” (Real) e “visão política do mundo” (Imaginário).

Se rebelião não fornece mais os quadros para uma ética capaz de dirimir nossas questões no nível do social (quero dizer político), sabemos pelo menos que o mito do “pai primevo” continha estrutura de verdade.

Com isso, estamos longe do “decisionismo subjetivista”, leitura detectada inicialmente por aqueles a quem incomoda o comprometimento com a noção de sujeito, e, consequentemente, com a noção de Verdade por parte da Psicanálise.

POLÍTICA 

(Fragmentos do livro Psicologia Jurídica - Operadores do Simbólico, publicado pela Del Rey Editora, em 2004)

A Psicanálise conhece momentos políticos, e, à sua maneira, ela é uma disciplina coletiva. Tendo em vista o estado atual de nosso pensamento em Política, haveria ganhos e progressos conceituais marcados pela Psicanálise. Em outras palavras, a Psicanálise é capaz de trazer esclarecimentos conceituais sobre certas questões políticas. Destacaremos três pontos em que a Psicanálise pode inspirar o pensamento político:

- O princípio de incompletude, que por sua vez seria de inspiração lógica. O enunciado mais simples desse princípio de incompletude diz que a totalidade se sustenta em alguma coisa que, afinal, é uma exceção com relação ao todo. Não podemos pensar um processo qualquer que seja ele, estritamente sob o signo da totalidade ou da totalização. Toda pretensa totalização estaria sempre carente de algo real.

- A importância excepcional do ato na transformação e na transmissibilidade do saber. Transpondo para nossa abordagem, diríamos que um saber novo se decide e circula a partir do momento em que a prova e a experiência na situação tornam-se indispensáveis. O caráter real do processo (prova na situação) está articulado ao próprio saber em virtude do ato e do estatuto do qual ele é revestido. Vamos abandonar a velha dicotomia teoria/prática. Não há teoria política da qual a prática seria aplicação. O ato em política quer dizer intervenção, prova na situação. A experiência política só pode ser transmitida por força da prova, prova de um ato.

- Vamos sempre nos referir ao Estado e às instituições a partir de uma dimensão ex-centrada. Apesar do subjetivo político estar sempre marcado pela relação perante o Estado, as instituições, temos que abandonar a ideia de posição frontal. A visão da insurreição é uma maneira de se colocar em posição frontal. Na realidade, pensamos que o Estado está em posição ex-centrada com relação ao subjetivo político, e não em posição central. A frontalidade é hoje um erro, mas, para sabê-lo, foi necessário atravessar toda uma série de experiências, algumas bem radicais. A ex-centração sugere que o Estado (para os que o imaginavam em posição privilegiada) esteve, até agora, na posição do Outro (instância inatingível na sua radicalidade, na sua suposta alteridade). Evidentemente, jamais ocorreria a um de nós dizer “vamos nos apoderar do Outro”, “é necessário isolar-se no Outro”, “vamos destruir o Outro”. Em vez disso, vamos dizer “manejar a situação”, “pegar leve”. Pegar leve de nenhum modo significa nada fazer. Mesmo que todas as pessoas fossem capazes de pegar leve, nem por isso elas agiriam todas da mesma maneira. As singularidades de cada um, os tipos especiais, a Psicanálise os detecta pela maneira como cada um se atém ao pegar leve. Afinal de contas, não é porque há uma pré-constituição do sujeito no nível do Outro que ele esteja condenado a nada fazer ou a agir sempre da mesma maneira no seu embate com o Outro.

(Fragmentos do texto “Psicanálise e Política”, do livro Interfaces, publicado pela Ophicina de Arte & Prosa, em 2011)

De início, encontramos uma Política atrelada à figura de representação, donde a ideia de teatro, arena política onde se manifesta a representação. Possivelmente, a Revolução Francesa e o ideário revolucionário do século XVIII criaram condições para que assim se entendesse a luta contra o despotismo e a legitimação pretendida por quem ocupa o poder. Os sistemas atuais, presidencialistas e outros, fundados na representação parlamentar, inclui-se nessa categoria.

Por oposição a essa primeira acepção, existe sempre a possibilidade de uma Política identificada com a vida, com as forças da vida, quer se chamem elas vontade de poder, fluxo desejante, ou mesmo democracia direta. O contato, assim como o debate entre Psicanálise e Política se fez até hoje dentro dos parâmetros das duas acepções acima definidas.

Cabe uma terceira maneira de definir Política, desta vez longe da ideia da representação, sem qualquer menção ao teatro, sem fazer valer a força irracional do que se poderia chamar vontade de poder.

Cabe uma interrogação na nossa atualidade sobre o político, interrogação essa que nos levasse a um pensamento que tem a ver com a práxis, com a Política não necessariamente partidária. Interrogação na qual a Psicanálise estivesse implicada não incluiria aplicação ou mobilização da Psicanálise como o fizeram tantos que nos precederam nesse debate.

Já dissemos, foi a Psicanálise convocada a tomar parte no debate político mais de uma vez, vale mencionar o debate em 1912/1913 a propósito do que se chamou visão do mundo. Nele tomaram parte Putnam (professor na Universidade de Harvard), Ferenczi, Tausk e Freud. A posição de Freud será esclarecedora: “A Psicanálise não será uma visão do mundo”, sentenciou Freud. Se a Psicanálise fosse uma visão do mundo, estaria atrelada ao paradigma representacional, encontrando nessa representação (nessa visão) seu fechamento.

Desde já, podemos adiantar que, em nossa proposta, a Política é um procedimento graças ao qual se engendra verdade e sujeito. Assim, Política difere do que, na opinião comum, designamos por esse termo, a saber: o governo dos negócios deste mundo e os conflitos que ele provoca no seio da coletividade e/ou entre essas coletividades.

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