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EDITORIAL


Cadernos de Africa (Africa Notebooks) , 2013– em andamento, detalhe da vista de instalação no ICA, Londres. 
Cortesia: artista e Mendes Wood, São Paulo; fotografia: Mark Blowe
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Após a pandemia, as desigualdades vão aumentar? Thomas Piketty, o autor mais vendido da história da Economia com o livro O capital no século XXI, não tem dúvida: “o primeiro efeito da covid-19 é de mais desigualdade”. Desigualdade social para ele é uma opção política e ideológica, e não uma fatalidade ou algo inevitável. Se os dados sobre essa recente mobilidade social mostram que a fome e a pobreza voltaram a assombrar milhões de famílias no Brasil − o país voltou ao Mapa da Fome em 2018; em 2022, registrou 58,7% da população convivendo com a insegurança alimentar, sendo 15,5% em situação gravíssima −, isso significa que algo político precisa ser feito imediatamente. As cenas chocantes de 2021, como pessoas buscando ossos e carcaças para se alimentar, não podem ser creditadas só à crise provocada pela pandemia. Para atingir a igualdade, no entanto, necessitamos da diferença, seja em programas sociais – quem tem menos precisa de mais −, seja em políticas de taxação que revertam a concentração indecente de renda.

Eduardo Viveiros de Castro, acerca da diferença, comenta uma frase de Lévi-Strauss, dizendo que se começamos por nos considerar especiais em relação aos outros seres vivos, isso foi apenas o primeiro passo para alguns de nós passarmos a nos considerar melhores que os outros seres humanos. Então, continua ele, “você vai excluindo, excluindo, até acabar se olhando sozinho no espelho da sua casa”. “Não que todos sejam iguais a você”, completa, “são todo diferentes como você”. Restituir o valor e a igualdade significa, portanto, restituir a capacidade de diferir. “Ser diferente sem ser desigual”, ou seja, não se confunde nunca diferença e desigualdade.

Há um gozo desmedido na engrenagem da desigualdade social, que testemunha um excesso ao qual não se quer renunciar. O discurso capitalista parece se alimentar do rechaço ao Simbólico, num “choque dos gozos”, como bem nomeou Éric Laurent em seu “Racismo 2.0”, ganhando autonomia em relação às estruturas de discurso, o que confere à segregação um novo estatuto. O que se rechaça, em última instância, é a própria diferença significante e, de modo mais amplo, a diferença no plano das relações e da cultura, ainda que, contraditoriamente, nunca se tenha reivindicado tanto a diversidade (étnico-racial, religiosa, cultural, de gênero, de orientação sexual, de nacionalidade, de opção política, dentre outras). É “a subordinação real da sociedade ao capital”, como diagnostica Antonio Negri.

DERIVAS ANALÍTICAS, na sua 17ª edição, quer investigar o ponto em que a diferença pode ser absoluta para tratar a disparidade entre as representações que o sujeito faz de si e a ação política que se abre para ele lidar com a desigualdade social. Para tanto, convidamos o artista mineiro Paulo Nazareth, reconhecido internacionalmente, cujo trabalho em vídeo, fotografia, desenhos, diários e objetos colecionados incorpora gestos simples, ligados à imigração, ao racismo e ao colonialismo. A força do seu fazer artístico está – e essa é a razão da escolha do seu nome para esta edição −, todavia, no cultivo e na construção de relacionamentos com indivíduos que cruzam o seu caminho, especialmente aqueles colocados à margem devido ao seu status legal ou reprimidos pelas autoridades governamentais, combinando vivências, trocas e contradições, de um modo que, a nosso ver, revela as crescentes restrições de mobilidade impostas por fronteiras econômicas, sociopolíticas no século XXI, indicando as questões que envolvem raça, ideologia e distribuição desigual do desenvolvimento.

A seção Aquele texto... traz, mais uma vez, uma contribuição de Célio Garcia, cuja morte em 2020 não consegue nos afastar de sua produção, sempre inquietante e provocadora. O texto aqui é “Uma lógica não predicativa”, que “sustenta o irregular”, enfrentando o alcance desastroso dos significantes identificatórios reforçados por uma lógica predicativa, já que, como disse Viveiros de Castro – citado por Célio em outro texto sobre a Lógica da predicação –, “identidade é que é uma ausência de diferença, e não a diferença uma ausência de identidade”.

Trazemos também, na seção Mathesis, Heloísa Caldas, Marco Antônio Coutinho Jorge e Sonia Alberti, com o texto “A Psicanálise e os paradoxos da política da diferença”. Os três autores se dedicam a uma reflexão profunda acerca da política da Psicanálise no que concerne à diferença absoluta do Um, traço primordial de um sujeito desejante, aquém e além do que conhecemos como sintoma social. Cleyton Andrade, com “As gotas com as quais o pensamento escreve”, relata sobre um país que faz de seu racismo negro algo irrepresentável, que fez da utopia de uma democracia racial, o S2 necessário para manter inapreensível e impensado o S1 da intolerância. Há ainda Romildo do Rêgo Barros, com “Anotações sobre a diferença absoluta e a diferença relativa”, que parte da diferença absoluta que se trata de alcançar em uma análise, para encontrar a dignidade em Kant, em tempos em que “tudo vale qualquer coisa”, colocando um ponto de interrupção na produção das diferenças relativas. Por fim, Antônio Teixeira, comA aura da gambiarra”, trabalha uma noção que se aplica bem ao propósito de pensar a diferença também como invenção para o sujeito em um mundo dominado pelo objeto da produção capitalista, apontando uma saída do discurso do capitalismo no interior de sua própria estrutura, no gesto de quem se apropria do objeto industrial e o subverte no nível de sua causa final, ao dar a ele um encaminhamento não previsto pela lógica do capital.

A seção Você disse contemporâneo? conta, nesta edição, com Marcus André Vieira, com “Meus dias de branco”, um relato em primeira pessoa de um analista brasileiro branco num país onde tornar-se negro é uma necessidade, talvez maior que em outros países. Aqui, o mito da miscigenação, apoiado em marcas raciais distintivas menos evidentes, funciona como cortina de fumaça para legitimar uma violência não menos pesada que em outras terras, violência, insistentemente negada, de uma desigualdade que cria prisões lotadas e institui o genocídio cotidiano de jovens negros. A segregação toma forma de racismo no ponto que aloca como I(A) − espelho plano matricial da constituição de qualquer imagem de Eu no Ocidente − a branquitude como referente universal, a partir da ilusão de que o Branco não é uma cor, uma raça, mas que, invisibilizado, é o próprio Humano. Por sua vez, Achilles Mbembe, com “O falo”, texto de seu livro Brutalismo, pensando a África, identifica que tanto o corpo quanto a sexualidade fora do poder sempre se abrem para um campo de dispersão e, portanto, de ambivalência, na qual prevalece a lógica dos significados inesperados, sendo o falo, certamente, a representação de um signo essencialmente diferenciador, ainda que, contemporaneamente, se assista a uma desvirilização dos subalternos na escala social. Fechando a seção, a Equipe editorial de DERIVAS ANALÍTICAS, provocada pelo tema desta edição, tenta entender a desigualdade a partir da taxa de acumulação de renda nos países desenvolvidos, tão maior do que as taxas de crescimento econômico, o que pode se tornar uma ameaça à democracia, uma vez que a renda sobre o capital cresceria num ritmo mais rápido do que por meio do trabalho, acumulando-se nas mãos de pequenos grupos, enquanto a renda do trabalho se dispersaria pela população como um todo, aumentando a desigualdade.

A seção Sinopses, resenhas etc. & tal traz uma apresentação do processo artístico de Paulo Nazareth, que faz com que a arte entre na rede de textos de DERIVAS ANALÍTICAS como ator, no "entre" textos, como um meio potente de criar, como resposta inédita ao Real, reflexões por meio de imagens, para além da palavra. Há também Criolo, com a canção Subirusdoistiozin, de 2010, com uma melodia que fica na cabeça – “paparapapá” − e com uma fala, própria dos moradores do bairro Grajaú, em São Paulo, onde o cantor foi criado, que reivindica a língua como local de resistência. Os tiozinhos do título “contaminam” o espaço da favela, contribuindo para a marginalidade florescer, em meio à corrupção da sociedade, misturando “perrecos” (quem fica de papo furado) de fora da comunidade, que têm “sucrilhos no prato”, e crianças armadas da favela (“tão de HK”), enquanto outros estão tranquilamente na praia com suas motos (“bonitão na praia de Hornet”). Tem ainda um poema de Jacques Lacan, de 1929, Hiatus Irrationalis, palavras em ação poética, que prenunciam o que Lacan dizia ser um “futuro anterior do que eu teria sido com relação ao que estou me tornando”, sob a forma do “corpo sutil” do seu embaraço com a escrita, palimpséstica, misteriosa, surpreendente, insólita, derrapante, rebuscada, enodada, engomada e inútil, como já a classificou Philippe Sollers. Por fim, trazemos a resenha de um jogo, lançado pelas editoras Boitempo e Autonomia Literária, Kapital!, criado pelos sociólogos franceses Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot, que propõe uma reflexão sobre a sociedade em que vivemos e suas regras não ditas, estimulando uma complexificação da lógica da desigualdade, que é sempre resultado de uma condução política realizada em favor dos mais ricos.

Que o leitor de DERIVAS ANALÍTICAS encontre aqui muitas fulgurações!  

Editor:
Musso Greco 

Equipe editorial:
Bárbara Afonso
Cristiane Barreto
Frederico Feu
Gilson Iannini
Olívia Viana  

 

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